Qualquer leitor que compulsar os contos de "Katmandu" perceberá que Anna Maria Martins é visceralmente escritora. É que a história curta vem a ser a sua mais patente forma de composição. Preocupa-a o ser na sua essência. Mais ainda o estar no mundo, pois as narrativas, de qualquer modo, expõem as limitações do ser humano. Agora, na literatura, o ser travestido em sujeito da ação dramática, em personagem, entregue às próprias dúvidas. Como a contista desenvolve penetrante olhar crítico, observa por vezes suas criaturas com senso de humor, chegando, até, a submetê-las ao jogo de ironia. Tudo com a sutileza das belas letras, sem a grosseria panfletária. Mediante frases límpidas, desnudas, atinge a atmosfera densa das ligações existenciais. A vida moderna, contemporânea, está viva nos contos de Anna Maria Martins. "Katmandu" inicia a coletânea. É como se apoiasse nos valores de hoje, com as demandas da juventude urbana. Conto antológico. Depois vem "A Herança". O leitor jamais terá lido testemunho tão chocante sobre a tortura. Traduz a intimidade de um serviço sujo que avilta a pessoa, a vida em sociedade, toda a humanidade. Diálogos escritos com uma força e maestria insuspeitadas. Adiante, com "Fundo de Gaveta", agruras de uma escritora afundada no jornalismo. "Escanteio" mais uma vez explora o conflito de gerações, mas com leveza e ironia. "Contagem Regressiva (fragmentos)", reminiscências da Segunda Grande Guerra. "Jó Versus ECT (da série Jó e as Agruras da Vida Urbana)" e o seguinte são indescritível retrato da cidade contemporânea. "Impotência (nada a ver com a sexual)": recaída no tema da escrita literária como estorvo. Os contos-situações surgem na segunda parte, cortes sucessivos do olhar seletivo da autora. Leia-se "HD 41" e veja-se o desempenho de um executivo vitorioso. O conjunto atrai e aprisiona o leitor.