Qual é a psiquiatria dos psiquiatras de hoje? Aquela que foi antevista por numerosos autores nas últimas décadas, prognosticando uma psiquiatria enfim científica, solidamente fundamentada na bioquímica, na genética molecular e nas neurociências cognitivas, amparadas em rigorosas tecnologias de investigação? Não. Será então a psiquiatria dos psiquiatras de ontem? Também não. Hoje, é imperioso reconhecer, não obstante todos os anseios e todo o conhecimento construído ao longo dos seus mais de duzentos anos de existência, que a psiquiatria perdeu o rumo e já não sabe mais o que a constitui. Tendo perdido a clínica, e com ela sua bússola, sua tradição e seu saber, o campo psiquiátrico fica aberto a todo tipo de deriva. Hoje se assiste à prescrição indiscriminada de psicotrópicos, até mesmo dispensando para isso etiquetas ou rótulos diagnósticos. Medicamentos psicotrópicos são utilizados sem indicação formal (off-label prescription), o que leva a perguntar o que determina tais atos. Se, para o psiquiatra dos anos inaugurais da reforma psiquiátrica, libertar os pacientes dos rótulos diagnósticos era uma prioridade, no início do século XXI prescinde-se destes, bem como do psiquiatra, e até mesmo da psiquiatria, para uma medicamentação psicotrópica geral dos males da vida e do viver. Não é difícil entender esse fenômeno, considerando-se, primeiro, que os médicos de todas as especialidades se tornaram seus artífices e, segundo, que o paciente, como consumidor, informado através do marketing e do social, assume funções de autodiagnóstico e autoprescrição. Os textos reunidos neste livro, enfocando a interseção da psicanálise com o discurso científico da psiquiatria, das neurociências e da genética contemporâneas, e o lugar em que neles fica situada a subjetividade, buscam problematizar tais equívocos, não se limitando a apontá-los, mas construindo bases para sua superação.